Por Edson Teles e Renan Quinalha.
A busca da verdade e a realização da justiça em relação aos crimes
da ditadura sempre foram reivindicações dos movimentos de familiares de desaparecidos
políticos e de ex-presos políticos no Brasil. Já nos anos 1980, eles propunham
a criação de uma comissão de inquérito, via Congresso Nacional, que tratasse do
tema durante a transição.
Após a promulgação da nova Constituição, em 1988, em vários
momentos esses movimentos retomaram as mesmas proposições, nos diversos
governos democráticos (note-se que os três mais recentes, durante os últimos
dezenove anos, foram presididos por vítimas diretas da ditadura). Finalmente,
durante os encontros da Conferência Nacional de Direitos Humanos, em 2009, a
proposta de criação de uma comissão da verdade foi incluída no terceiro Plano
Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), por indicação dos familiares, e
tornou-se questão de Estado. Essa luta persistente culminou com a criação da
Comissão Nacional da Verdade (CNV), constituída em maio de 2012 com o objetivo
de apurar as graves violações de direitos humanos no país.
No entanto, pesa-nos constatar que após ter transcorrido mais de
um ano de sua instalação, o que corresponde à metade de seu prazo total de
funcionamento, ainda são poucos os resultados conhecidos e os avanços
alcançados.
Nos últimos meses, a CNV tem sido notada mais pela crise que
atravessa do que pela repercussão de seu trabalho ou de sua importância.
Incompleta em sua formação após a renúncia de dois de seus sete membros, pouco
aberta ao diálogo e à participação, e marcada por constantes brigas e divisões
internas, a comissão tem feito um trabalho bastante aquém das expectativas nela
depositadas.
Quais são as razões dessa crise que tem consumido as energias da
CNV e levado a uma espécie de bloqueio na busca pela verdade?
Uma questão a destacar é a necessidade de despersonalizar a crise
em curso, deslocando o foco das características subjetivas e dos nomes dos
comissionados para uma análise do projeto de democracia em questão na estrutura
e nas escolhas da comissão.
Levantamos a hipótese de que a lógica da “garantia da
governabilidade”, vigente atualmente e desde a transição para a democracia,
herdou de modo passivo os “entulhos” da ditadura. As graves violações de
direitos ocorridas durante esse período, tratadas como questão unicamente de
governo, se transformam, para além de restos da ditadura, em opções cotidianas
e conscientes da própria democracia. Tais escolhas têm determinado a
continuidade e o fortalecimento de práticas, regras e cultura política
autoritárias, em torno dos espaços e das movimentações da CNV.
Um breve histórico da criação da CNV
A apuração da verdade sobre a ditadura era uma reivindicação
antiga do movimento de direitos humanos no Brasil. Desse ponto de vista, a
criação da CNV, em si mesma, representou uma conquista importante.
Contudo, contextualizando as circunstâncias políticas e as
condições institucionais, notam-se retrocessos e bloqueios, já em sua origem,
que produzem uma espécie de trabalho de Sísifo.
Prevista pela primeira vez, em termos oficiais, no PNDH-3,[1] a proposta original era de criação de uma comissão da verdade que
também pudesse realizar – ou ao menos incentivar – alguma forma de justiça em
relação aos crimes apurados. Não por outra razão, constava na Diretriz 25 do
PNDH-3, expressamente, a tarefa de “suprimir do ordenamento jurídico brasileiro
eventuais normas remanescentes de períodos de exceção que afrontem os
compromissos internacionais e os preceitos constitucionais sobre Direitos
Humanos”, uma clara referência à Lei de Anistia de 1979.
Diante da resistência de diversos setores às políticas sobre a
verdade e a memória,[2] alguns deles atuando dentro do
governo, como os ministérios da Defesa e das Relações Exteriores, houve a
edição, por parte do presidente Lula, do Decreto n. 7.177, de 12 de maio de
2010, que alterou os termos do PNDH-3. Foi um recuo programático justamente nos
temas humanitários mais politizados e que provocaram maior tensão. As alterações
efetuadas foram sintomáticas para a compreensão do mandato e dos limites atuais
da Comissão Nacional da Verdade.
Uma breve análise comparativa entre o texto original e o final,
documento básico para a criação da CNV, torna explícita a supressão de
referências fundamentais, tais como: “repressão ditatorial”, “resistência
popular à repressão”, “pessoas que praticaram crimes de lesa-humanidade” e
“responsabilização criminal sobre casos que envolvam atos relativos ao regime
de 1964-1985”.
Mas o que significa a exclusão no decreto de termos como
“repressão política” e “responsabilização criminal”?
Há uma série de questões envolvidas nessas idas e vindas do Estado
democrático, as quais foram tratadas sempre de modo velado e silencioso, sem
que soubéssemos ao certo o que tanto discutiram Presidência, Ministério da
Defesa e Secretaria Nacional de Direitos Humanos, em meio à crise. Não nos
propomos aqui a dar um quadro completo do problema, mesmo porque seria
impossível diante de tamanho segredo. Porém, há aspectos de definição do
discurso adotado que podem nos sugerir algumas possibilidades de análise.
O recuo e o abrandamento discursivos operados por acordos de
governo, depois da revolta de setores conservadores, estão essencialmente
orientados por quatro preocupações: a primeira foi que as medidas de verdade,
memória e justiça fossem diluídas em um período histórico mais largo, sem
identificação expressa com a ditadura civil-militar de 1964-1985; a segunda é a
preocupação de que as violações aos direitos humanos não sejam
responsabilizadas penalmente, tampouco caracterizadas como crimes de
lesa-humanidade, por não serem estes suscetíveis de anistia e prescrição; uma
terceira preocupação, ao suprimir o termo “repressão política”, foi colocar no
foco das investigações também as ações de resistência dos grupos de luta
armada, e não apenas o terrorismo de Estado; por fim, uma última preocupação
foi postergar ações concretas mais imediatas, adotando uma terminologia mais
vaga e menos vinculante aos poderes do Estado.
Não à toa, a Lei n. 12.528, de 18 de novembro de 2011, ao
instituir a CNV, consagrou em alta conta a reconciliação nacional enquanto
princípio norteador dos trabalhos (art. 1o). Além disso, diluiu o objeto da
apuração ao adotar, como intervalo temporal, o período que vai de 1946 a 1988.
Na mesma linha, estabeleceu que “as atividades da Comissão Nacional da Verdade
não terão caráter jurisdicional ou persecutório” (art. 4o, § 4o). E, no art.
6o, foi reafirmado o disposto na Lei da Anistia de 1979, assegurando que a
justiça penal em relação a esses crimes não ocorreria nesse momento de busca da
verdade.
Parte da efetivação dessas mudanças deve-se aos acordos de
imposição, por parte do governo e da base aliada, do projeto de lei sobre a
CNV, sem que se ouvissem os movimentos sociais e demais setores da sociedade, e
em especial sem dar voz às vítimas e a seus familiares. Ressalte-se que sua
aprovação se deu por meio de um ato de exceção: a votação em regime de urgência
urgentíssima, somente com os líderes de bancada, por meio do qual se dispensa
boa parte das formalidades regimentais em razão do caráter inadiável ou
emergencial do tema em questão. Ora, por que seria inadiável um assunto que por
mais de trinta anos foi ocultado da esfera pública? Será que depois de mais de
25 anos de democracia a sociedade brasileira não teria vida política
qualificada o suficiente para discutir como abordar uma apuração histórica e
suas consequências para o presente?
Após o recuo político para costurar um amplo “consenso” sobre uma
comissão da verdade, sua criação tornou-se ponto pacífico e aceito por todas as
forças políticas representadas no colegiado de líderes partidários do Congresso
Nacional. Capaz de atender, limitada e parcialmente, às demandas por verdade
das vítimas, o projeto não contrariou os interesses dos setores conservadores.
O direito à verdade surgiu como uma saída intermediária diante da pressão
sofrida pelo governo. Por um lado, perpetuar o silêncio e a tímida política de
memória não era mais possível, dada a mobilização da sociedade e a cobrança
internacional sobre o Estado brasileiro; por outro, levar a julgamento os
responsáveis pelos crimes ou mesmo atribuir maiores poderes à CNV significaria
uma afronta aos setores conservadores.
Assim, na formulação do texto do PNDH-3 e na discussão do projeto
de lei, que também se refletiram na posterior escolha dos membros, orientada
para ser “pluralista” em sua composição e com membros “imparciais” (art. 2o),
prevaleceu a lógica da “garantia da governabilidade” não como legado do passado
autoritário, mas como opção do tipo de democracia em construção.
Um balanço das atividades: o relatório de um ano
Um balanço das atividades: o relatório de um ano
Uma avaliação mais criteriosa dos trabalhos da CNV ainda não é
possível, pois não há material disponível para isso. Boa parte das ações não
tem sido divulgada e há poucos elementos concretos para uma análise dessa
natureza.
O relatório lançado por ocasião do primeiro aniversário da
comissão, intitulado “Balanço de atividades: um ano de Comissão Nacional da
Verdade”,[3] mais parece um texto de apresentação institucional da CNV do que
efetivamente um balanço analítico dos trabalhos realizados e dos resultados
atingidos.
Após praticamente metade do prazo total de funcionamento da CNV,
foi publicado um texto com apenas vinte páginas e, de uma perspectiva qualitativa,
há pouquíssima – para não dizer nenhuma – informação nova.
O relatório acaba assumindo caráter de carta de intenções. A
maioria dos verbos denota que a CNV “pretende”, “está empenhada”, “está
desenvolvendo”, todos remetendo a ações futuras, o que ilustra o estágio atual
de paralisia. Parte expressiva do balanço de um ano, na realidade, é nada mais
do que a compilação dos grupos de trabalho que caracterizam a estrutura
organizativa da CNV, reunidos em seis “temas de pesquisa”.
Mencionam-se diversos acervos documentais que serão utilizados,
bem como se ressalta a importância dos testemunhos. No entanto, pouco consta no
que se refere à análise crítica e à reconstrução da verdade com base nesses
elementos documentais e testemunhais. Além disso, como a própria CNV registra
em seu relatório parcial, foram realizadas somente quinze audiências públicas
em todo o território nacional, o que demonstra que a prática contradiz o
discurso da valorização da narrativa com efeito catártico e com a centralidade
da vítima.[4]
É preciso observar que a precariedade dos trabalhos da CNV não se
deve a uma falta de dedicação ou esforço. É certo que, de forma geral, os
membros da comissão e seu corpo de assessores estão trabalhando, a despeito das
crises internas e baixas que, em verdade, são sintomas e não causa das
dificuldades atuais da CNV.
Hoje, podemos nos perguntar, o que resta da ditadura? Passados
cerca de trinta anos do fim do regime autoritário, poderíamos dizer que a
transição para a democracia continua em andamento? Quando assistimos aos
acordos de imposição de uma política de memória fundada no silêncio sobre a
responsabilização dos criminosos da ditadura e de descumprimento das sentenças
condenatórias do Estado (na Justiça Federal e na Comissão Interamericana de Direitos
Humanos), temos um sinal de que estruturas herdadas do período ditatorial
permanecem? Ou um modelo de democracia no qual os movimentos sociais, elemento
fundamental para as decisões políticas, têm presença reduzida nas instâncias de
governo?
Diante da questão sobre o que resta da ditadura, talvez seja
possível realizar uma leve inversão em sua lógica, mas com profunda implicação
no diagnóstico da democracia. Perguntar sobre a herança da ditadura pode
indicar que as estruturas autoritárias presentes na democracia se configurariam
como uma falha no sistema. Como se ainda não tivéssemos conseguido, com 25 anos
de estado de direito, reformar as instituições e, especialmente, determinada
cultura social e política. Contudo, se pensarmos nas questões levantadas
anteriormente, nos parecerá que não constataremos somente a herança ditatorial,
mas a decisão política de reafirmar parte desse legado como integrante da
realidade brasileira atual.
Aquilo que permaneceu não é mais, ou somente, uma herança. Já se
consolidou como o produto de um processo ruminado pelo estado de direito, em
suas várias instâncias. Ao visitarmos o que nomeamos como legado ditatorial,
veremos como uma parcela dele vem se renovando nas estruturas da atual
democracia. A tortura, institucionalizada na ditadura, é praticada largamente
no atual sistema penitenciário, nas unidades da Fundação Casa e nas delegacias.
A violência policial vem crescendo sistematicamente, ampliando seu alvo que, no
presente, não é somente o militante, mas também o jovem de periferia, o
favelado, o negro.
Engessada pelos bloqueios postos pelo processo mais amplo de
negociação que lhe deu origem, a CNV acaba isolada dentro do governo e sem
condições políticas de avançar nos embates necessários para a reconstrução da
verdade em nosso país. Sem poder afrontar e submeter o poder militar por não
contar com efetivo respaldo da Presidência da República, a comissão vê-se
imobilizada, consumida em conflitos internos e condenada a, como no mito de
Sísifo, empurrar pedras montanha acima. Sozinha, no entanto, ela não poderá
levar adiante a tarefa que lhe foi confiada.
* Publicado originalmente no Le monde diplomatique de setembro de 2013.
Notas
[1] Terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3)
instituído pelo Decreto n. 7.037, de 21 de dezembro de 2009.
[2] Previstas nas Diretrizes 23, 24 e 25 do PNDH-3.
[3] Disponível aqui.
[4] Tais deficiências nos campos da transparência, participação e
comunicação são bem exploradas na análise “Um ano de Comissão da Verdade:
contribuições críticas para o debate público”, elaborada pela ONG carioca
Instituto de Estudos da Religião (Iser). Disponível aqui.
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