segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Julgamento sobre a lei da Anistia

A Lei da Anistia foi responsável pela recomposição das forças políticas após o traumático período iniciado em 1964 com o Golpe Civil Militar no Brasil. A repressão e a tortura praticadas pelo regime comandado pelos militares e os atentados e raptos promovidos pelos grupos guerrilheiros foram anistiados, isto é, as condenações e crimes de caráter político foram “perdoados”.

A lei afirma em seu primeiro artigo:

É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares

Em 2010 a Ordem dos Advogados do Brasil entrou com processo propondo interpretação diversa da lei, a saber, que os atos de tortura praticados pela ditadura não sofreriam os efeitos da Anistia. O Supremo Tribunal Federal julgou improcedente a ação.

Do ponto de vista das aulas de Filosofia, nosso objetivo consistirá em julgar a pertinência da revisão da lei da anistia no sentido de deixar de contemplar os torturadores, tal como essa discussão vem sendo proposta recentemente por vários grupos os quais, em alguma medida, aproveitam o debate aberto pela Comissão Nacional da Verdade. Filosoficamente, o que está em questão é a ideia básica do uso e da legitimidade da violência.

Abaixo posto alguns textos referentes ao assunto que podem embasar tanto defesa quanto promotoria.




domingo, 20 de outubro de 2013

Cidadão Boilesen

Para quem eventualmente não pôde assistir, abaixo posto a primeira parte do documentário Cidadão Boilesen, dirigido por Chaim Litevski e lançado no ano de 2009. As demais partes podem ser facilmente encontradas no site de compartilhamento de vídeos youtube.


quinta-feira, 3 de outubro de 2013

O trabalho de Sísifo da Comissão Nacional da Verdade

Por Edson Teles e Renan Quinalha.

 
A busca da verdade e a realização da justiça em relação aos crimes da ditadura sempre foram reivindicações dos movimentos de familiares de desaparecidos políticos e de ex-presos políticos no Brasil. Já nos anos 1980, eles propunham a criação de uma comissão de inquérito, via Congresso Nacional, que tratasse do tema durante a transição.
Após a promulgação da nova Constituição, em 1988, em vários momentos esses movimentos retomaram as mesmas proposições, nos diversos governos democráticos (note-se que os três mais recentes, durante os últimos dezenove anos, foram presididos por vítimas diretas da ditadura). Finalmente, durante os encontros da Conferência Nacional de Direitos Humanos, em 2009, a proposta de criação de uma comissão da verdade foi incluída no terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), por indicação dos familiares, e tornou-se questão de Estado. Essa luta persistente culminou com a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), constituída em maio de 2012 com o objetivo de apurar as graves violações de direitos humanos no país.
No entanto, pesa-nos constatar que após ter transcorrido mais de um ano de sua instalação, o que corresponde à metade de seu prazo total de funcionamento, ainda são poucos os resultados conhecidos e os avanços alcançados.
Nos últimos meses, a CNV tem sido notada mais pela crise que atravessa do que pela repercussão de seu trabalho ou de sua importância. Incompleta em sua formação após a renúncia de dois de seus sete membros, pouco aberta ao diálogo e à participação, e marcada por constantes brigas e divisões internas, a comissão tem feito um trabalho bastante aquém das expectativas nela depositadas.

Quais são as razões dessa crise que tem consumido as energias da CNV e levado a uma espécie de bloqueio na busca pela verdade?

Uma questão a destacar é a necessidade de despersonalizar a crise em curso, deslocando o foco das características subjetivas e dos nomes dos comissionados para uma análise do projeto de democracia em questão na estrutura e nas escolhas da comissão.
Levantamos a hipótese de que a lógica da “garantia da governabilidade”, vigente atualmente e desde a transição para a democracia, herdou de modo passivo os “entulhos” da ditadura. As graves violações de direitos ocorridas durante esse período, tratadas como questão unicamente de governo, se transformam, para além de restos da ditadura, em opções cotidianas e conscientes da própria democracia. Tais escolhas têm determinado a continuidade e o fortalecimento de práticas, regras e cultura política autoritárias, em torno dos espaços e das movimentações da CNV.

Um breve histórico da criação da CNV

A apuração da verdade sobre a ditadura era uma reivindicação antiga do movimento de direitos humanos no Brasil. Desse ponto de vista, a criação da CNV, em si mesma, representou uma conquista importante.
Contudo, contextualizando as circunstâncias políticas e as condições institucionais, notam-se retrocessos e bloqueios, já em sua origem, que produzem uma espécie de trabalho de Sísifo.
Prevista pela primeira vez, em termos oficiais, no PNDH-3,[1] a proposta original era de criação de uma comissão da verdade que também pudesse realizar – ou ao menos incentivar – alguma forma de justiça em relação aos crimes apurados. Não por outra razão, constava na Diretriz 25 do PNDH-3, expressamente, a tarefa de “suprimir do ordenamento jurídico brasileiro eventuais normas remanescentes de períodos de exceção que afrontem os compromissos internacionais e os preceitos constitucionais sobre Direitos Humanos”, uma clara referência à Lei de Anistia de 1979.
Diante da resistência de diversos setores às políticas sobre a verdade e a memória,[2] alguns deles atuando dentro do governo, como os ministérios da Defesa e das Relações Exteriores, houve a edição, por parte do presidente Lula, do Decreto n. 7.177, de 12 de maio de 2010, que alterou os termos do PNDH-3. Foi um recuo programático justamente nos temas humanitários mais politizados e que provocaram maior tensão. As alterações efetuadas foram sintomáticas para a compreensão do mandato e dos limites atuais da Comissão Nacional da Verdade. 
Uma breve análise comparativa entre o texto original e o final, documento básico para a criação da CNV, torna explícita a supressão de referências fundamentais, tais como: “repressão ditatorial”, “resistência popular à repressão”, “pessoas que praticaram crimes de lesa-humanidade” e “responsabilização criminal sobre casos que envolvam atos relativos ao regime de 1964-1985”.

Mas o que significa a exclusão no decreto de termos como “repressão política” e “responsabilização criminal”?

Há uma série de questões envolvidas nessas idas e vindas do Estado democrático, as quais foram tratadas sempre de modo velado e silencioso, sem que soubéssemos ao certo o que tanto discutiram Presidência, Ministério da Defesa e Secretaria Nacional de Direitos Humanos, em meio à crise. Não nos propomos aqui a dar um quadro completo do problema, mesmo porque seria impossível diante de tamanho segredo. Porém, há aspectos de definição do discurso adotado que podem nos sugerir algumas possibilidades de análise.
O recuo e o abrandamento discursivos operados por acordos de governo, depois da revolta de setores conservadores, estão essencialmente orientados por quatro preocupações: a primeira foi que as medidas de verdade, memória e justiça fossem diluídas em um período histórico mais largo, sem identificação expressa com a ditadura civil-militar de 1964-1985; a segunda é a preocupação de que as violações aos direitos humanos não sejam responsabilizadas penalmente, tampouco caracterizadas como crimes de lesa-humanidade, por não serem estes suscetíveis de anistia e prescrição; uma terceira preocupação, ao suprimir o termo “repressão política”, foi colocar no foco das investigações também as ações de resistência dos grupos de luta armada, e não apenas o terrorismo de Estado; por fim, uma última preocupação foi postergar ações concretas mais imediatas, adotando uma terminologia mais vaga e menos vinculante aos poderes do Estado.
Não à toa, a Lei n. 12.528, de 18 de novembro de 2011, ao instituir a CNV, consagrou em alta conta a reconciliação nacional enquanto princípio norteador dos trabalhos (art. 1o). Além disso, diluiu o objeto da apuração ao adotar, como intervalo temporal, o período que vai de 1946 a 1988. Na mesma linha, estabeleceu que “as atividades da Comissão Nacional da Verdade não terão caráter jurisdicional ou persecutório” (art. 4o, § 4o). E, no art. 6o, foi reafirmado o disposto na Lei da Anistia de 1979, assegurando que a justiça penal em relação a esses crimes não ocorreria nesse momento de busca da verdade.
Parte da efetivação dessas mudanças deve-se aos acordos de imposição, por parte do governo e da base aliada, do projeto de lei sobre a CNV, sem que se ouvissem os movimentos sociais e demais setores da sociedade, e em especial sem dar voz às vítimas e a seus familiares. Ressalte-se que sua aprovação se deu por meio de um ato de exceção: a votação em regime de urgência urgentíssima, somente com os líderes de bancada, por meio do qual se dispensa boa parte das formalidades regimentais em razão do caráter inadiável ou emergencial do tema em questão. Ora, por que seria inadiável um assunto que por mais de trinta anos foi ocultado da esfera pública? Será que depois de mais de 25 anos de democracia a sociedade brasileira não teria vida política qualificada o suficiente para discutir como abordar uma apuração histórica e suas consequências para o presente?
Após o recuo político para costurar um amplo “consenso” sobre uma comissão da verdade, sua criação tornou-se ponto pacífico e aceito por todas as forças políticas representadas no colegiado de líderes partidários do Congresso Nacional. Capaz de atender, limitada e parcialmente, às demandas por verdade das vítimas, o projeto não contrariou os interesses dos setores conservadores. O direito à verdade surgiu como uma saída intermediária diante da pressão sofrida pelo governo. Por um lado, perpetuar o silêncio e a tímida política de memória não era mais possível, dada a mobilização da sociedade e a cobrança internacional sobre o Estado brasileiro; por outro, levar a julgamento os responsáveis pelos crimes ou mesmo atribuir maiores poderes à CNV significaria uma afronta aos setores conservadores.
Assim, na formulação do texto do PNDH-3 e na discussão do projeto de lei, que também se refletiram na posterior escolha dos membros, orientada para ser “pluralista” em sua composição e com membros “imparciais” (art. 2o), prevaleceu a lógica da “garantia da governabilidade” não como legado do passado autoritário, mas como opção do tipo de democracia em construção.


 Um balanço das atividades: o relatório de um ano

Uma avaliação mais criteriosa dos trabalhos da CNV ainda não é possível, pois não há material disponível para isso. Boa parte das ações não tem sido divulgada e há poucos elementos concretos para uma análise dessa natureza.
O relatório lançado por ocasião do primeiro aniversário da comissão, intitulado “Balanço de atividades: um ano de Comissão Nacional da Verdade”,[3] mais parece um texto de apresentação institucional da CNV do que efetivamente um balanço analítico dos trabalhos realizados e dos resultados atingidos.
Após praticamente metade do prazo total de funcionamento da CNV, foi publicado um texto com apenas vinte páginas e, de uma perspectiva qualitativa, há pouquíssima – para não dizer nenhuma – informação nova.
O relatório acaba assumindo caráter de carta de intenções. A maioria dos verbos denota que a CNV “pretende”, “está empenhada”, “está desenvolvendo”, todos remetendo a ações futuras, o que ilustra o estágio atual de paralisia. Parte expressiva do balanço de um ano, na realidade, é nada mais do que a compilação dos grupos de trabalho que caracterizam a estrutura organizativa da CNV, reunidos em seis “temas de pesquisa”.
Mencionam-se diversos acervos documentais que serão utilizados, bem como se ressalta a importância dos testemunhos. No entanto, pouco consta no que se refere à análise crítica e à reconstrução da verdade com base nesses elementos documentais e testemunhais. Além disso, como a própria CNV registra em seu relatório parcial, foram realizadas somente quinze audiências públicas em todo o território nacional, o que demonstra que a prática contradiz o discurso da valorização da narrativa com efeito catártico e com a centralidade da vítima.[4]
É preciso observar que a precariedade dos trabalhos da CNV não se deve a uma falta de dedicação ou esforço. É certo que, de forma geral, os membros da comissão e seu corpo de assessores estão trabalhando, a despeito das crises internas e baixas que, em verdade, são sintomas e não causa das dificuldades atuais da CNV.
Hoje, podemos nos perguntar, o que resta da ditadura? Passados cerca de trinta anos do fim do regime autoritário, poderíamos dizer que a transição para a democracia continua em andamento? Quando assistimos aos acordos de imposição de uma política de memória fundada no silêncio sobre a responsabilização dos criminosos da ditadura e de descumprimento das sentenças condenatórias do Estado (na Justiça Federal e na Comissão Interamericana de Direitos Humanos), temos um sinal de que estruturas herdadas do período ditatorial permanecem? Ou um modelo de democracia no qual os movimentos sociais, elemento fundamental para as decisões políticas, têm presença reduzida nas instâncias de governo?
Diante da questão sobre o que resta da ditadura, talvez seja possível realizar uma leve inversão em sua lógica, mas com profunda implicação no diagnóstico da democracia. Perguntar sobre a herança da ditadura pode indicar que as estruturas autoritárias presentes na democracia se configurariam como uma falha no sistema. Como se ainda não tivéssemos conseguido, com 25 anos de estado de direito, reformar as instituições e, especialmente, determinada cultura social e política. Contudo, se pensarmos nas questões levantadas anteriormente, nos parecerá que não constataremos somente a herança ditatorial, mas a decisão política de reafirmar parte desse legado como integrante da realidade brasileira atual.
Aquilo que permaneceu não é mais, ou somente, uma herança. Já se consolidou como o produto de um processo ruminado pelo estado de direito, em suas várias instâncias. Ao visitarmos o que nomeamos como legado ditatorial, veremos como uma parcela dele vem se renovando nas estruturas da atual democracia. A tortura, institucionalizada na ditadura, é praticada largamente no atual sistema penitenciário, nas unidades da Fundação Casa e nas delegacias. A violência policial vem crescendo sistematicamente, ampliando seu alvo que, no presente, não é somente o militante, mas também o jovem de periferia, o favelado, o negro.
Engessada pelos bloqueios postos pelo processo mais amplo de negociação que lhe deu origem, a CNV acaba isolada dentro do governo e sem condições políticas de avançar nos embates necessários para a reconstrução da verdade em nosso país. Sem poder afrontar e submeter o poder militar por não contar com efetivo respaldo da Presidência da República, a comissão vê-se imobilizada, consumida em conflitos internos e condenada a, como no mito de Sísifo, empurrar pedras montanha acima. Sozinha, no entanto, ela não poderá levar adiante a tarefa que lhe foi confiada.


* Publicado originalmente no Le monde diplomatique de setembro de 2013.


Notas
[1] Terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) instituído pelo Decreto n. 7.037, de 21 de dezembro de 2009.
[2] Previstas nas Diretrizes 23, 24 e 25 do PNDH-3.
[3] Disponível aqui.
[4] Tais deficiências nos campos da transparência, participação e comunicação são bem exploradas na análise “Um ano de Comissão da Verdade: contribuições críticas para o debate público”, elaborada pela ONG carioca Instituto de Estudos da Religião (Iser). Disponível aqui.

domingo, 15 de setembro de 2013

Químico jogado pelos EUA no Vietnã ainda causa dor e sofrimento





Quase 40 anos depois de seu fim, a Guerra do Vietnã continua fazendo vítimas. Ainda hoje, crianças nascem afetadas pelo agente laranja jogado pelos EUA

criança vietnã agente laranja eua
Ainda hoje, crianças nascem no Vietnã afetadas pelo agente laranja jogado nos anos 60 (Foto: BBC)
Muitas crianças nascem no país com malformação congênita, resultado da contaminação que o país sofreu por agente laranja.
A substância química foi jogada por Forças Americanas no solo para destruir plantações agrícolas e desfolhar florestas usadas como esconderijo pelos inimigos, mas acabou causando danos e contaminação que duram até hoje.
A Cruz Vermelha diz que 150 mil casos de malformação congênita estão ligados à substância. Os Estados Unidos contestam esses números.
O programa Inside Out, da BBC, acompanhou o trabalho de uma equipe de cirurgiões de Londres que foram para a região de Da Nang realizar plásticas em crianças que ainda hoje nascem com defeitos decorrentes do químico.


(Vídeo – Inside Out – BBC Brasil)

Fonte: Pragmatismo Político.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

"Na Moral" e Estado laico



Posto abaixo o programa “Na Moral” transmitido pela Rede Globo no dia 1º de agosto de 2013. O programa trata sobre Estado laico e tolerância religiosa.


Vale lembrar o porquê da postagem: a ideia básica do programa, isto é, fazer líderes religiosos e mesmo sem crença religiosa discutirem sobre a questão do Estado laico e como mediar os diversos valores propostos pelas mais variadas religiões é algo louvável. Cabe saber se essa ideia foi bem realizada.

Para tanto, não custa lembrar que a Rede Globo tem tradição em mentir e omitir informações. Apenas duas menções:



Dito isso, vale dizer: o vídeo, a quem interessar o tema, deve ser assistido com todo o cuidado, ponderando todo argumento, buscando outras fontes etc. Sob essa perspectiva o debate pode ser, de algum modo, esclarecedor e contribuir com a tolerância religiosa que deve presidir toda a sociedade democrática.




segunda-feira, 29 de julho de 2013

O Mundo de Gregor Samsa*



A ficção é história, história humana, ou não é nada – Joseph Conrad

Com a sonora abertura “Certa manhã, ao despertar de sonhos intranqüilos, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”, Franz Kafka (1883-1924) inicia sua novela A Metamorfose. No texto é contada a história de Gregor Samsa, impelido a caixeiro viajante a fim de sustentar irmã, mãe e pai após a falência desse último. O enredo centra-se na transformação de Gregor e a relação que passa a estabelecer com sua família e, por extensão, com a sociedade. O tom impessoal, escrito como se fosse um relatório, ao invés de diminuir o estranhamento do leitor frente à insólita situação serve apenas para evidenciá-la. A impossibilidade do exercício de suas funções econômicas leva à marginalização de Gregor frente a sua família e ao desenlace do livro.
Qual o interesse em se ler Kafka? Kafka nos fornece um olhar sobre o mundo que reconstrói seu lado mais absurdo, considerado pela maioria como tipicamente “normal”. Em que pese o recurso ao fantástico, o assunto de Kafka é realista: o mundo não é “mágico” (habitado por dragões ou fadas), mas sim se trata da prosaica sociedade capitalista, a qual não admite aqueles que a ela não se integram, que pune qualquer um que não incorpore os princípios do mercado (e pune mesmo aqueles que o incorporam). É como se Kafka mostrasse até o limite o que significa a desumanização a qual Gregor é conduzido pelas suas atividades.
Do ponto de vista da filosofia, Kafka permite uma espécie de diagnóstico de época: seus textos são uma antecipação de um momento histórico no qual as relações autenticamente humanas são substituídas pela utilidade econômica – o valor de cada pessoa passa a ser medido pelo dinheiro e mesmo a família, âmbito primário de socialização do indivíduo, sofre essa influência decisiva.
Kafka, judeu, nascido na Boêmia (República Tcheca), escreveu em alemão e teve contatos com círculos anarquistas que de algum modo o influenciaram. Kafka narrou o absurdo de um mundo que nos foi legado; transforma-lo, eis nossa tarefa.


*Publicado no Jornal Paulo Medeiros, jornal vinculado ao grêmio estudantil da Escola Paulo Medeiros.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

"Levante a sua voz" - Coletivo Intervozes

Abaixo posto o vídeo que foi exibido aos segundos anos no dia 19/07 sobre a democratização nos meios de comunicação do Brasil. O nome do vídeo é "Levante a sua voz" e foi produzido pelo Coletivo Intervozes. Ele tematiza o fenômeno da comunicação humana, desde o ponto de vista individual ao coletivo, bem como o direito à comunicação social.

Levante sua voz - Coletivo Intervozes

domingo, 7 de julho de 2013

Antologia de Textos Filosóficos

A Secretaria de Educação do Paraná lançou recentemente uma Antologia de Textos Filosóficos. O objetivo do projeto é disponibilizar para os estudantes do ensino médio o contato com os textos clássicos dos filósofos.

A coletânea de textos se estrutura com uma introdução redigida por um especialista seguida da tradução de um texto ou de excertos. Como ponto de partida – e não de chegada – trata-se de um material de extremo valor.

Enquanto em Santa Catarina padecemos da mais absoluta negligência no tocante à educação, posto aqui o link da Antologia para eventual consulta:

terça-feira, 4 de junho de 2013

Sobre a questão do aborto

Em debate motivado a partir da leitura do livro Direitos humanos – o que são e o que devem ser do historiador Jacob Gorender, especificamente o capítulo a respeito do problema do aborto, surgiram várias posições a respeito do assunto. 

No interior dessa tema, um ponto em especial teve proeminência: a questão de quando se inicia efetivamente a vida humana. Esse ponto de discussão é extremamente complexo. Isso porque não intervém apenas na resposta a essa questão uma simples definição científica, mas sim como se trata de debate candente de nossa sociedade a explicação científica passa a ser atravessada por valores éticos e políticos.

Sem quaisquer pretensões de esgotar o debate (muito pelo contrário), indico abaixo uma pequena matéria da revista Mundo Estranho sobre discussão realizada no Supremo Tribunal Federal a respeito do assunto tentando inventariar as diversas posições sobre o tema. Provavelmente não é o melhor texto a respeito, mas sim apenas um pontapé inicial:


domingo, 5 de maio de 2013

Sobre a pena de morte



A pena de morte é um assunto que desperta paixões o que, por vezes, dificulta a discussão racional sobre o tema. Além disso, essa questão envolve em sua discussão uma dimensão ética, política e lógica, o que são aspectos privilegiadamente filosóficos.

A fim de se promover debate com os estudantes, abaixo posto o link de dois textos sobre o assunto, um pró e outro contra a pena capital. São apenas dois textos, provavelmente não os melhores, mas ainda sim interessantes e que podem promover a discussão sadia sobre os vários pontos de vista envolvidos. Esses textos não impedem – ao contrário, devem estimular – a busca de novas fontes, com mais e melhores argumentos.


A favor da pena de morte – 15 argumentos a favor da pena de morte

Comentei também em algumas turmas sobre a prisão na ilha de Bastoy na Noruega. Posto abaixo a reportagem:

 Conheça o País que consegue reabilitar 80% dos seus criminosos

terça-feira, 16 de abril de 2013

"Se Deus não existe, tudo é permitido"? ("Irmãos Karamazov", Fiódor Dostoiévski)

NÃO

Uma ética humana
                                                                                                          RENATO JANINE RIBEIRO

A FRASE, acima convertida em pergunta, é do século 19, mas a resposta "não" a ela somente se torna possível no século 18. Parece um paradoxo, mas me explico. Até o tempo das "Luzes", a esmagadora maioria dos pensadores ocidentais concordaria com o enunciado devido a Dostoiévski, isto é, com a idéia de que o ateu é imoral. Quem não acredita no Criador não seria capaz de respeitar nenhuma regra ética.
Assim, por volta de 1650, o bispo anglicano John Bramhall, um dos críticos mais ásperos do inglês Thomas Hobbes (que, por sinal, não era ateu), acusa o filósofo de não crer em Deus: "Hobbes acaba com o céu", diz ele, "e, pior: com o inferno".
Gosto muito desse "pior", que dá a chave do enigma. A acusação de ateísmo na verdade oculta o que realmente importa. O problema, para o fiel Bramhall, não é tanto se o céu existe. É que precisa haver um inferno, para que a multidão parva obedeça. Anos depois, quando o libertino conde Rochester agoniza, o pastor o convence, no leito de morte, a dizer-se arrependido. O conde não crê em Deus, mas é persuadido pelo argumento de que, se um grande do reino morrer sem os sacramentos, o populacho não será mais contido pelo medo do inferno.
Com as "Luzes", isso muda. A idéia de que, para ser moral, seria preciso acreditar em Deus (isto é, no Deus que amedronta, que pune: o Deus do inferno) é contestada em nome de uma ética humana, que possa valer mesmo sem o medo do castigo eterno.
Talvez seja Kant quem deu o passo decisivo para tanto, quando formulou um princípio cujo legado pode ser assim simplificado: a cada ação que cometo, estou reconhecendo o direito (ou o dever) de todo ser humano a também cometê-la.
Isso -que em "kantês" significa cada ser humano se tornar legislador ético- implica que, se desobedeço aos sinais de trânsito, se procuro levar vantagem em tudo, confiro a todos os meus semelhantes os mesmos direitos. Ora, é óbvio que, assim, o convívio social seria impossível. Provavelmente, teremos vidas sórdidas, sofridas, cruéis e curtas se agirmos dessa maneira. Por conseguinte, a cada ação que eu pratique, devo refletir muito bem se quero autorizar todos os outros a praticá-la. Se sim, ótimo. Se não, devo rever minha posição.
A partir dessa teoria, que resumi em linguagem que já não é kantiana, fica possível uma ética somente dos humanos entre si. Não é mais imprescindível a Revelação, menos ainda a punição por toda a eternidade. O conteúdo dos mandamentos não depende mais de Deus. Pode ser constituído em nosso próprio mundo. A moral e a ética deixam de apelar a uma transcendência, ao poder do Altíssimo, e se constroem neste mundo imanente, o nosso, o único que conhecemos.
Não quer dizer que essa idéia de uma ética sem o medo a Deus se tenha tornado unanimidade. Muitos ainda acham que Deus é necessário para explicar o que é certo e errado (nós não seríamos capazes disso) ou para punir quem se desvie do bom caminho (idem, ibidem). Mas, se hoje a conduta ética dos ateus ou indiferentes não tem nada a dever à dos religiosos e sobretudo à dos intolerantes, é porque essa tese moderna de uma ética humana tem valor e validade.
É importante concluir com duas notas. A primeira é que uma ética assim inspirada em Kant (mas que altera algumas de suas teses) é capaz de evoluir. No século 18, possivelmente ela admitiria a pena de morte; hoje, provavelmente, não. Muitas questões ficam em aberto, como aborto e eutanásia. O crucial é a forma da escolha ética (que cada um seja desafiado a enunciar seus valores, sob a condição de reconhecê-los como universais ou, pelo menos, recíprocos), mais que um conteúdo fixado de vez por todas.
A segunda e curiosa conclusão é que uma ética assim humana não é necessariamente atéia. Posso ou não acreditar em Deus, mas eu ser ou não ético deixa de estar subordinado ao medo de um Deus assustador. Uns serão éticos, mesmo não acreditando n'Ele. Por sua vez, outros cultuarão um Deus da justiça e do amor, mais que da repressão e do castigo. A crença em Deus ganha, em vez de perder, quando Ele corta o vínculo preferencial com o inferno e o medo.

RENATO JANINE RIBEIRO, 57, é professor titular de ética e filosofia política da USP. É autor, entre outros livros, de "Ética na Política" (Sesc) e de "A Sociedade contra o Social" (Cia. das Letras).

sexta-feira, 22 de março de 2013

Indicação de livro: "1984" de George Orwell



Em algumas salas divulguei o livro 1984 do escritor nascido na Índia e radicado na Inglaterra George Orwell. 

O interesse do livro reside na construção profética e distópica - isto é, de um futuro caótico e indesejável, passado no ano de 1984; vale lembrar: o livro foi escrito em 1949 - acerca do futuro da humanidade. Orwell escreveu sob o impacto do fim da Segunda Guerra Mundial e início da guerra fria. Ainda que o regime nazista houvesse sido derrotado, o stalinismo seguia revigorado pela vitória de guerra. O livro pode ser visto como uma denúncia do presente e também como um alerta ao futuro, uma crítica libertária do socialismo soviético.

O livro é um dos principais, senão o principal, romance político do século XX. Temas como liberdade individual, vigilância, sexo, linguagem como capacidade de estruturação do pensamento são trabalhados de modo exemplar no romance. Vários personagens são alegorias de figuras históricas bem determinadas. Além disso, expressões como "big brother" tiveram origem nesse romance.

Abaixo posto link da editora Cia das Letras com uma pequena resenha do livro e um trecho para leitura.


Na biblioteca de nossa escola Paulo Medeiros há dois exemplares.

quinta-feira, 14 de março de 2013

Doze Homens e uma sentença





O filme Doze Homens e uma Sentença (12 Angry Men, 1997) de Willian Friedkin é um “remake” do filme clássico homônimo de Sidney Lumet, indicado ao Oscar de melhor filme em 1958.

O filme conta a história da discussão entre doze jurados sobre o crime de assassinato, cuja autoria suposta seria do próprio filho do homem morto, portanto um parricídio. O filme inicia já no término do julgamento. Isso significa que a reconstituição do caso – das provas, das evidências, dos testemunhos – é feita por meio da fala dos jurados. O espectador não tem acesso ao caso, não viu os testemunhos, mas apenas pode julgar a partir do que é dito pelos próprios jurados. Dentro da construção do filme isso é proposital: tal como os jurados não viram o assassinato a respeito do qual discutem e precisam formar uma opinião, o espectador  igualmente não viu o julgamento a respeito do qual os jurados discutem. A lição aqui é que, conforme dito pelo jurado número 11 em certo momento do filme, os fatos não nos aparecem de maneira inequívoca: só temos contato com a maioria dos fatos e das coisas nas quais acreditamos por meio de relatos, nos quais intervém os interesses e a personalidade daquele que relata, daquele que nos conta o fato.

Do ponto de vista da disciplina de Filosofia, gostaria de buscar organizar os argumentos e os contraargumentos que ocorrem durante o filme a respeito da inocência ou culpa do acusado. Se o uso da razão é realizado a partir da argumentação, é necessário revermos em que consistem os argumentos, qual a força de convencimento de cada um deles e como foram aceitos ou refutados.

Para quem não pôde ver o filme na íntegra, abaixo posto o link para o filme ser baixado:


Sobre a discussão a respeito da culpa ou inocência do acusado é importante lembrar duas coisas. Em primeiro lugar, como é regra no Direito, o ônus da prova cabe ao acusador. Em outras palavras: caso alguém seja acusado de algo, esse alguém não precisa se provar inocente. Quem tem o dever de provar algo é quem acredita que tal pessoa seja culpada. É como no dito popular: todos são inocentes até que se prove o contrário. O segundo ponto: como é um caso de homicídio é necessário haver unanimidade entre os jurados. Caso não haja, haveria um impasse e, por conseqüência, outro julgamento. Desse modo, conforme já dito, não é necessário provar que o acusado é inocente, mas sim que, como a juíza diz no início do filme, se há uma “dúvida razoável” o acusado deve ser absolvido. Para considerar o acusado inocente não é necessário ter certeza que ele não cometeu o crime; basta apenas ter dúvida que ele cometeu o crime.

Antes disso, porém, é preciso fazer uma breve descrição sobre os jurados. Como é claro durante todo o filme, ninguém expressa qualquer ponto de vista racional de modo “puro”. Todos os jurados são afetados por emoções de todo o tipo, que variam desde a compaixão pelo acusado, passando pelo medo e até mesmo o ódio.

Além disso, durante o filme vamos conhecendo a história de vida de cada um dos jurados. De início só são pessoas diferentes umas das outras pela cor da pele e roupa, mas no desenvolvimento do filme podemos ver que cada um faz parte de um grupo social e cultural específico e que isso influencia em muito as suas opiniões. Por exemplo, há quatro jurados negros e isso é importante no desenvolvimento do enredo, na medida em que um deles tenta enquadrar os demais segundo o critério da cor em determinado momento do filme, proferindo um discurso de unidade entre os negros contra o povo latino.

A referência do número de cada jurado foi retirado do site Internet Movie Database, o principal site de armazenamento de dados a respeito de filmes. Vamos às descrições dos jurados.

Jurados

Jurado 1: é o coordenador do júri. Pouco se sabe a respeito dele, exceto o fato de ele ter sido treinador de futebol americano (ele revela isso ao jurado 8 a certa altura do filme). Tem um temperamento apaziguador e tenta guiar o trabalho do júri do melhor modo possível.

Jurado 2: é um idoso negro. Parece uma pessoa simples. Não fica claro qual é sua profissão.

Jurado 3: é um senhor de suspensórios e gravata. Trabalha com um serviço de mensageiros e emprega trinta e sete funcionários, portanto é um empresário. Junto com o jurado 8, é o mais importante do filme e antagonista principal. No decorrer do enredo ele revela ter tido problemas graves com seu filho, o que é em larga medida um motivo das suas posturas frente o acusado. Seu temperamento costuma ser forte, irado, em boa parte do filme. Não se deixa levar por razões e frequentemente altera a voz.

Jurado 4: é um senhor de terno e óculos. Dentre aqueles que argumentam a favor da culpa do acusado é de longe o mais racional nos debates que conduz. Sempre calmo, expõe pacientemente suas razões e reprova até em seus amigos os comportamentos mais emocionais. Sua profissão é corretor.

Jurado 5: é um homem negro entre 35 e 40 anos. Durante a trama descobrimos que ele foi morador de favela, o que é importante, pois é uma experiência de vida que traz com ele e serve para ponderar a inocência do acusado.

Jurado 6: é um homem careca e gordo. Se autodefine como um “trabalhador”, ao que tudo indica é um pintor. É uma pessoa simples. Durante o filme revela ter fortes valores ao, por exemplo, ameaçar de agressão física quem desrespeitasse o jurado 9, o senhor mais idoso.

Jurado 7: desde o início mostra-se como um falastrão. Revela a todos que quer terminar a discussão rapidamente, pois tem ingressos para um jogo de beisebol. Possui um caráter bem leviano, na medida que não apresenta convicções fortes e muda de voto ao sabor das circunstâncias e não por um convencimento real.

Jurado 8: é um senhor cuja profissão é arquiteto. É o protagonista do filme. Possui um temperamento no geral calmo, mas que em certas ocasiões exalta-se – como quando reprova o jurado 3 ao afirmar que ele parece querer ser o carrasco do acusado. Ele conduz a conversação na maior parte do tempo e argumenta com mais força a favor da ideia de que há uma dúvida razoável a respeito do acusado.

Jurado 9: é o senhor mais idoso. É o primeiro a mudar de voto. Os argumentos que propõe não costumam ser muito convincentes e é frequentemente desrespeitado, sobretudo pelo jurado 10.

Jurado 10: ao longo do filme descobrimos que ele foi um nacionalista islâmico. Ele é a representação do discurso fundamentalista e ao mesmo tempo oportunista. Seu discurso é cheio de preconceitos e violência.

Jurado 11: é um senhor relojoeiro. Ele não é americano, mas sim proveniente da Europa Oriental (não se especifica o país). Apresenta um temperamento calmo via de regra (embora haja um momento no qual se exalte, ao censurar a postura leviana do jurado 7) e argumenta de modo bastante convincente.

Jurado 12: veste-se de terno e óculos de sol. Sua profissão é publicitário. Durante o filme não apresenta uma personalidade marcante. É a representação de um sujeito sem grande reflexão e superficial, embora não mal-intencionado (como é o jurado 7). É definido pelo jurado 3 como uma “bola de ping-pong”, por não ter convicções fortes sobre a culpa do acusado.

Elementos culturais presentes no filme

Antes de entrar no debate a respeito dos argumentos sobre cada evidência analisada pelos jurados, é necessário tecer um breve comentário sobre alguns elementos culturais da sociedade americana presentes no filme. No júri mostrado no filme estão representadas várias tendências, grupos, culturas e classes da sociedade americana.

O primeiro elemento a se destacar é ao mesmo tempo cultural e de classe social: o acusado de ter matado seu próprio pai é latino (proveniente da imigração recente dos grupos da América Latina, sobretudo México, para os Estados Unidos) e pobre (morador de uma favela). É um fato que os latinos ainda buscam seu espaço na sociedade americana. Embora sua imigração seja motivada pela busca de empregos, são vistos por alguns setores da sociedade como “parasitas” ou coisa do gênero. Além do desprezo dos brancos, enfrentam a rivalidade de setores dos negros (como é expresso pelo jurado 10). Portanto lembremos disso: o acusado não é apenas um acusado, mas sim um acusado latino e pobre (o que alimenta muito os preconceitos a seu respeito).

Quanto aos jurados é possível ver várias diferenças de classe ali expressas. Os jurados 3, 4, 8 e 12 aparentam ter boa condição financeira, pois tem profissões mais valorizadas (empresário, corretor, arquiteto e publicitário, respectivamente). Os demais é difícil determinar, mas são pessoas de renda mais baixa com certeza os jurados 2, 5 e 6.

Argumentos

O objetivo agora é sistematizar os principais argumentos utilizados no filme. A ideia é perceber em que se fundam os argumentos, quais são suas virtudes e seus defeitos. Lembremos: os dois principais testemunhos é do senhor idoso que mora embaixo do apartamento no qual o crime foi cometido e da mulher que mora em frente ao apartamento no qual o crime ocorreu.

Primeiro momento do argumento da testemunha ocular mulher. Segundo esse argumento, uma mulher ao lado do trilho do trem teria visto o momento exato do assassinato e reconhecido o assassino como sendo o garoto. O primeiro a fazer uso desse argumento é o jurado 10. O problema é que ele considera esse testemunho como irrefutável: a mulher viu o assassinato, reconheceu o garoto como assassino, fim de história. No entanto, um pouco antes de dar fé, de dar crédito, ao testemunho da mulher, o jurado 10 fez um discurso dizendo que não se devia acreditar nos favelados – como o garoto acusado –, pois eles nasciam, por natureza, mentirosos. A questão é que a mulher que testemunhou era igualmente uma favelada, o que leva o jurado 8 a perguntar ao jurado 10: “Você não acredita no garoto. Por que acredita na mulher? Ela não é ‘uma deles’ [dos favelados, daqueles que não merecem crédito] também?”. O ponto aqui é notar que o jurado 10 estabeleceu um critério: não deve-se acreditar em favelados; porém, para argumentar em prol da culpa do acusado ele se valeu do testemunho de uma favelada. O jurado 8 simplesmente tratou de apontar que esse critério é incoerente, contraditório, e por isso deveria ser descartado. Como é notável durante todo o filme, o jurado 8 não concorda com o preconceito frente as pessoas que moram em favelas. Aqui ele só notou essa questão a fim de assinalar a contradição do discurso do jurado 10.

Argumento da surra como motivo para o crime. Todo o crime necessita de um motivo. O jurado 8 argumenta que o garoto viveu em condições terríveis, que seu pai era um crápula e o maltratava, inclusive com surras físicas. Esse argumento serve para mostrar que não é possível culpabilizar alguém de modo simples, sem levar em consideração sua vida, as condições sociais nas quais a pessoa cresceu e foi educada. Porém, esse argumento permite a pergunta que o jurado 4 direcionará ao jurado 8: “Você não diria que aquelas surras seriam um motivo para ele matar o pai?”. O jurado 8 parece encurralado, afinal de contas parece que ele mesmo deu o argumento que vai no sentido da culpa do garoto acusado. O jurado 4 insiste:

“Esse garoto, vamos dizer que ele é o produto de um bairro violento e uma família instável, ele não pode evitar. Estamos aqui para decidir se ele é inocente ou culpado de homicídio, não para discutir as razões que o levaram a crescer dessa forma”.

Ora, se é verdade que o garoto cresceu em um meio violento, isso não seria um incentivo mesmo para que ele cometesse o crime? Talvez sim, talvez não. O jurado 8 argumenta: “Esse garoto apanhou tantas vezes que a violência é normal em sua vida”.  Importante notar aqui que esse argumento não é inválido, mas sim apenas, digamos, inconclusivo, não é possível por meio dele chegar ao provável motivo de um crime.

Arma do crime. Esse é certamente um dos “clímax”, um dos pontos altos, do filme. Todos os jurados estão convencidos que a arma do crime – a faca com detalhes de escorpião – é muito singular, muito diferente, e o fato de ter sido vendida ao acusado e ter sido encontrada no corpo do pai não pode ser fruto de uma coincidência ou de um acidente, como afirma o garoto acusado (o garoto disse que faca caiu de seu bolso). Quase todos acreditam se tratar da mesma faca, provavelmente uma das únicas jamais produzidas. Vale lembrar: não havia digitais na faca. O jurado 8 argumenta que poderia haver, que é possível haver uma faca idêntica. Ninguém parece convencido nesse momento. Entretanto, o jurado 8 crava na mesa uma faca idêntica a do crime e demonstra que o argumento segundo o qual a faca era “única”, inimitável, é um mau argumento. Ter acreditado nesse argumento foi pura ingenuidade ou pré-disposição em condenar o acusado.

Argumento do reconhecimento da voz do garoto. O jurado 8 propõe questões que põe em dúvida o morador abaixo do apartamento no qual ocorreu o assassinato ter realmente podido reconhecer a voz do garoto acusado. Porque? Simplesmente porque no mesmo momento passava um trem no local segundo o testemunho da mulher. Se o homem que foi esfaqueado caiu nos dez segundos nos quais o trem passava, como reconhecer com certeza a voz que teria dito “eu vou te matar”. Reproduzo abaixo o diálogo entre o jurado 8 e o jurado 3 a respeito:


Jurado 8:
- (...) o velho, de acordo com seu próprio testemunho, tendo escutado o garoto gritar "Eu vou te matar" e o corpo caindo, deve ter ouvido aquela frase enquanto o trem passava logo ao lado da sua orelha! É impossível que ele tenha ouvido.

Jurado 3:
- Que besteira! É claro que ele ouviu!

Jurado 8:
- Você tem certeza, não é?

Jurado 3:
- O velho disse que o garoto gritou, isso é o bastante para mim.

Jurado 8:
- Bem, seja o que for que ele ouviu, não poderia identificar a voz com o trem passando.

Jurado 3:
- Você está falando de segundos aqui, ninguém pode ser tão preciso!

Jurado 8:
- Bem, eu acho que um testemunho que pode sentenciar um ser humano à morte deve ser preciso!

É justamente esse o ponto principal do debate: precisão, exatidão, certeza plena. Isso porque sentenciar alguém a morte deve ocorrer apenas em um caso no qual todas as dúvidas estejam superadas. O jurado 8 não conseguiu provar que o velho que morava embaixo do apartamento no qual o crime aconteceu não conseguiu ouvir, mas ele obteve sucesso porque ele conseguiu provar que simplesmente havia uma dúvida. Absolver o acusado pode ocorrer se há dúvida; condena-lo só pode ocorrer quando houver certeza. E como o jurado 3 concedeu que o testemunho não foi totalmente preciso, ele acabou por dar razão ao jurado 8.

Argumento da impossibilidade do velho do apartamento de baixo ter visto o garoto fugindo. Esse argumento é operacionalizado por meio de uma reconstituição empreendida pelo jurado 8. Trata-se de mostrar que o velho que morava no apartamento debaixo de onde ocorreu o crime não poderia ter visto o garoto fugir, pois mancava em razão de um derrame. Com a reconstituição, nota-se que o discurso do senhor idoso seria inconsistente (ele argumentava que teria chego em 15 segundo quando deveria ter demorado cerca de 42).


Argumento da dúvida quanto ao retorno do acusado ao local do crime. O acusado foi preso justamente no local do crime quando voltava para sua casa. O que isso pode significar? O jurado 11 propõe a seguinte tese: ter voltado para sua casa é um comportamento de um provável não-criminoso. O jurado 4 rebate: provavelmente o acusado saiu em pânico de casa, após ter se acalmado voltou para retirar a arma do crime do local; essa seria a explicação. Mas o jurado 11 não está convencido: a arma não tinha digitais, o que sinaliza que o criminoso as retirou ou planejou o crime de modo a não contaminar a arma. Essa postura de premeditação desfaz a consistência da tese de que o garoto estivesse em pânico.

Álibi do criminoso. Álibi significa a “presença em lugar diferente ao do crime na ocasião em que foi cometido.” Qual o álibi do acusado? Teria ido ao cinema. No entanto, na ocasião na qual ocorreu o flagrante, o acusado não soube dizer o filme e tampouco os atores que participaram do filme que teria visto. Isso seria índice de culpa ou de uma falha de memória costumeira? Segundo o jurado 4, sem dúvida, índice de culpa. O acusado, no tribunal, soube dizer em qual filme estava, mas no momento da prisão não. O jurado 8 então passa a testar o jurado 4 com perguntas triviais sobre sua vida cotidiana. As primeiras o jurado 4 responde com prontidão e exatidão, mas na medida em que se afasta do presente as respostas vão ficando mais genéricas até o momento que o jurado 4 revela falhas de memória – falhas comuns, que atingem quaisquer pessoas. O argumento do jurado 8 é que se alguém sem nenhum estresse emocional tem dificuldades de lembrar fatos cotidianos, o que se dirá de alguém que acabou de saber que seu pai foi morto. O jurado 9 resumiu bem o ponto em questão:

“Se é perfeitamente lógico para esse senhor [o jurado 4] esquecer alguns detalhes, é perfeitamente lógico para o garoto! Ser acusado de homicídio não dá a ninguém uma memória infalível”.

Argumento do teste psiquiátrico. O jurado 1 relembra que segundo o laudo emitido por psiquiatras, o acusado possuía potencialidade para matar, para ser um assassino. Esse seria um forte argumento a favor da sua culpa. O jurado 10, do modo irracional como ele costuma argumentar durante todo o filme, diz que “Eu não dou nada por um testemunho de um psiquiatra... nada!”. A discussão segue. O jurado 11 argumenta que esses testes não provam nada, precisamente porque falam apenas daquilo que somos capazes e não daquilo que de fato fizemos. Aqui o jurado 11 faz uso da distinção entre ato e potência: algo que está em potência não significa que um dia estará em ato. Para entender basta pensar em uma semente: na semente está em potência a árvore, ela é capaz de gerar a árvore. No entanto, se a semente não for plantada, regada e cuidada ela jamais se tornará aquilo que é em potência, ela jamais fará da potência um ato. O mesmo argumento é expresso pelo jurado 11: é possível que algumas das pessoas da sala do júri sejam “assassinos em potencial”. Disso não é lícito concluir que elas um dia, efetivamente, matarão alguém. Por essa razão os testes não podem ser uma prova a respeito da culpa do acusado. O jurado 10 rebate com o seguinte: “Vejam, se eles disseram que esse garoto é capaz de matar, ele pode ter matado, não é?”, ao passo que o jurado 8 responde: “Foi você que disse com essas palavras: ‘Eu não dou nada por um testemunho de um psiquiatra’!”. Novamente o jurado 10 entrou em contradição.

Segundo momento do argumento da testemunha ocular mulher. O segundo momento do argumento da testemunha mulher consiste em demonstrar que ela não podia ter visto com clareza o assassino porque ela usaria óculos. A evidência reside na marca em seu nariz percebida por vários jurados. Ora, como era noite, o que dificulta a visão, e como ela estava na cama, e não devia estar de óculos, conclui-se que ela provavelmente não viu o assassino.

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A importância do filme para nossa matéria consiste no fato de que após uma longa argumentação chegou-se a conclusões mais sensatas do que aquelas do início. Percebe-se pelo trajeto dos jurados como eles tinham suas opiniões iniciais fundadas no preconceito e na falta de crítica, de distanciamento, perante as “evidências”. Na verdade, os testemunhos e evidências simplesmente serviam à reafirmação de convicções prévias, serviam apenas a confirmação de preconceitos que muitos dos jurados já partilhavam, mas não conseguiam justificar racionalmente. Foi a partir da discussão iniciada pelo jurado 8 que se passou a refletir sobre as evidências e testemunhos para se chegar a uma opinião independente a respeito dos fatos.

Resta notar, ainda, que o jurado 3, o último a mudar de voto, era motivado por um trauma relacionado a seu filho, um forte sentimento que bloqueava sua reflexão independente, de maneira que projetava no acusado as suas frustrações pessoais.

Essas, em linhas gerais, as observações sobre o filme Doze Homens e uma Sentença.

quarta-feira, 13 de março de 2013

O enigma de Kaspar Hauser

(Estátua de Kaspar Hauser na cidade de Nuremberg)

Nas turmas do terceiro ano assistimos ao filme O Enigma de Kaspar Hauser (1974) do cineasta alemão Werner Herzog. O interesse em ver esse filme reside no fato de nele estar bem representado o problema da natureza – como o âmbito específico da repetição, do instinto, indiferente a ação humana –  e da cultura – o âmbito no qual há transformação e criação. A partir desse filme é possível realizar um questionamento a respeito de fatos ou práticas que consideramos naturalmente estabelecidos, como, por exemplo, andar. Levar em consideração que o ato tão trivial de “andar” não é algo natural, nos permite pensar a respeito da atividade criativa humana – que vai desde os atos mais simples de criação e utilização das ferramentas mais elementares, passa pela criação dos modos de expressão artísticos e chega até a elaboração e estabelecimento das normas de regulação da sociedade.

A respeito do filme, a história relata a vida de Kaspar Hauser, menino de cerca de 16 anos, que teria sido encontrado na cidade de Nuremberg na Alemanha. Teria vivido em um calabouço no qual era alimentado a pão e água e sem contatos humanos. A trama gira em torno do seu processo de socialização, de contato com a cultura desenvolvida pela humanidade, em especial a música.

A história real sobre a origem de Kaspar Hauser é bem controversa. Há quem advogue que tudo foi uma grande farsa, enquanto outros argumentam que Kaspar Hauser teria sido um descendente da casa real do estado de Baden e em razão da briga sucessória teria sido abandonado.

Abaixo indico dois textos interessantes sobre o assunto. O primeiro é a autobiografia de Kaspar Hauser, retratada em certo momento do filme. A tradução é a partir da edição francesa. O outro texto é do Profº Rafael Raffaelli da UFSC. Nesse texto o autor oferece um amplo panorama sobre as teorias a respeito da origem de Kaspar Hauser.



Quem eventualmente não conseguiu assistir o filme na íntegra, abaixo vai o link do site filmescomlegenda.tv no qual é possível baixá-lo:

O Enigma de Kaspar Hauser (Jeder für sich und Gott gegen alle)

Para quem tiver interesse, a filmografia de Werner Herzog pode ser consultada no link abaixo.